dezembro 29, 2011

Carlos Reis: "Para além de Portugal"


Comunicação do professor Carlos Reis lida na Audição Parlamentar sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, promovida pela Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da Republica, em Lisboa, no dia 7 de abril de 2008.

O texto citado é apresentado na norma ortográfica em que foi redigido.

1. Começo por três afirmações preliminares.
Primeiro: uma declaração de desinteresses. Não tenho interesses económicos, dependências políticas ou outras, quando me dedico a analisar a questão do Acordo Ortográfico; aliás, as minhas posições nesta matéria não são novas, já que as defendo desde 1990.
Segundo: uma declaração de interesse. Debato o Acordo Ortográfico porque me interessa a Língua Portuguesa e preocupa-me o seu destino, também à escala internacional.
Terceiro: uma declaração de índole ético-cultural, dividida em três frentes. Uma, que é a do respeito que igualmente me merecem todos os países onde o Português é língua oficial; outra, que é da  honestidade intelectual que preside às minhas reflexões sobre este tema; uma outra ainda, que a da afirmação, relativamente a este tema, de convicções fortes, mais do que de certezas dogmáticas ou aspirações a ser dono da verdade.
2. Posto isto, começo. Existe uma contradição  curiosa entre a forma como vivemos a nossa relação com a língua e os termos em que a postulamos como património colectivo. Essa contradição estabelece-se pela tensão entre duas tendências antagónicas.
Por um lado, acentuamos a relevância de um uso do idioma dominado pela criatividade individual e pela propensão para introduzir na língua elementos de diferenciação, sobretudo no léxico, mas também, algumas vezes, no que toca às articulações fonológicas — ou à “pronúncia”, para nos entendermos. Já quanto à ortografia, o caso muda de figura: impera nela uma estrita consciência do erro, apoiada por instrumentos — p. ex., os prontuários ou os correctores informáticos — que servem para regular as grafias.
No pólo oposto, está o comprazimento com que proclamamos o Português como factor de agregação do mundo “lusófono”, composto por uns supostos cerca de 200 milhões de falantes. A magnitude de um tal universo dá que pensar; e é evidente que ele se configura a partir de um património linguístico comum, cuja unidade, contudo, é relativa, como, de resto, sempre acontece em circunstâncias e em legados culturais semelhantes. Aqui vale a pena introduzir desde já uma destrinça: unidade não significa unicidade, confusão que alguns se esforçam por disseminar porque não leram o que foi escrito por Herculano de Carvalho (“Unidade não significa (…) uniformidade”(1)) ou por Celso Cunha e Lindley Cintra, ao afirmarem “a superior unidade da língua portuguesa dentro da sua natural diversidade”(2).
E todavia, parece óbvio que, num mundo reconhecido como globalizado, a consolidação de grandes blocos geo-culturais pode ajudar a salvaguardar interesses comuns, bem como singularidades no interior desses blocos, em domínios que estão para além da língua, mas que com ela se articulam: na literatura, nos negócios, na diplomacia, nas organizações internacionais, na ciência, etc.  E contudo, no caso de um idioma com o trajecto histórico do Português (poderei voltar a isto, para desarmadilhar as absurdas comparações do costume, com o espanhol e com o inglês),  essa consolidação não se faz sem instrumentos reguladores. Como quem diz: há idiomas cuja afirmação depende também de opções estratégicas que ajudem a compensar o poder hegemónico de duas ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global. Sabemos bem quais são essas línguas, nos nossos dias (o inglês, o espanhol); supõe-se que, no futuro, serão também o mandarim e o árabe.
3. É no equilíbrio instável entre uma tendência inovadora (ou “libertária”) e uma tendência reguladora (ou “normalizadora”) que as grandes línguas de cultura vão fazendo o seu caminho; e é da gestão daquele equilíbrio que depende a possibilidade de um idioma como o Português preservar alguma coesão, sem prejuízo da tal criatividade. Sabem-no bem os professores que quotidianamente convivem com a necessidade de explicar aos seus alunos que a famosa pontuação de José Saramago ou o léxico de Guimarães Rosa têm razões literárias que a razão gramatical e vernacular desconhece; e sabe-se bem que escritores que hoje são clássicos (um Garrett ou um Eça), no seu tempo foram algumas vezes apostrofados como ignorantes do vernáculo.
Estas são as bases em que fundo a minha reflexão sobre a questão do acordo ortográfico, remetendo para questões de índole histórica, sociolinguística e político-cultural, todas conduzindo a decisões de política linguística que são determinantes para a adequada resposta solicitada por aquelas questões. A consagração de um acordo ortográfico entre os países de língua oficial portuguesa é, neste contexto, uma decisão estratégica de capital importância.
Sei bem que há razões de vária ordem que podem interpor-se entre a grande razão estratégica que motiva o acordo ortográfico e a sua efectivação. Razões de índole educativa, razões de natureza económica, razões de feição simbólica, razões afectivas, até mesmo razões técnico-linguísticas. Todas elas merecem ser apreciadas; nenhuma delas chega, só por si, para pôr em causa as consideráveis vantagens de um instrumento que seguramente ajuda a decidir esta coisa muito simples: queremos ou não queremos que a Língua Portuguesa exiba a coesão relativa que ajude a viabilizar a sua existência plurinacional, multicultural e pluricontinental, com  estatura e com estatuto na cena internacional e com as vantagens políticas, económicas e culturais daí decorrentes? Se queremos, então vamos em frente com o acordo ortográfico; se não queremos, então esqueçamos o acordo ortográfico. Só que, depois, não haverá legitimidade para queixas, se o isolamento linguístico português (ou seja: dos portugueses) vier a ser o último reduto dos lusitanos encerrados numa recôndita aldeia resistente à mudança e ao moderado reajustamento da ortografia. Falo, evidentemente, pensando no horizonte de décadas ou de séculos, não tanto olhando para o imediatismo dos negócios em curso e dos seus pontuais ganhos e perdas.
4. Chegado a este ponto, lembrarei algumas coisas simples, mas nem sempre presentes nesta discussão.
Primeira coisa simples: um acordo é, por natureza, um acto positivo, envolvendo um sentido de entendimento que importa enaltecer e não menosprezar.
Segundo: um acordo não é uma dogmática unificação de procedimentos, é um encontro de vontades, fundado no reconhecimento da dignidade das partes, sem preconceitos, complexos ou reservas mentais.
Terceiro: um acordo, por ser um entendimento, implica disposição para o diálogo e para abertura, não o fechamento em comportamentos autistas.
Quarto: um acordo implica também o pragmatismo que leva a que se concorde no que é possível concordar, sem prejuízo de diferenças que não põem em causa o essencial da concordância.
Por fim: se um acordo incide na ortografia, então reconheça-se que ele visa aquele domínio linguístico que é mais convencional e susceptível de reajustamentos rapidamente incorporados pelo uso e sobretudo pelas crianças, que são os falantes do futuro. Não tenham receio os educadores: o que está em causa neste acordo ortográfico é aproximar a grafia da articulação fonológica (aproximar, não identificar) ou, noutros termos, o modo como escrevemos do modo como falamos. Já o perguntei e repito-o agora: há alguma ofensa cultural, se passo a escrever “elétrico” em vez de “eléctrico”? Houve desrespeito pelo idioma de Alexandre Herculano, pelos legisladores do Liberalismo ou pelos cidadãos letrados seus contemporâneos, quando passámos a escrever-se “fósforo” ou “exausto”, em vez de “phosphoro” ou “exhausto”?
A estas perguntas acrescento outras que, para mim, são claramente retóricas.
Primeira pergunta: deve Portugal manter-se agarrado a uma concepção conservadora da ortografia, como se ela fosse o derradeiro baluarte da identidade portuguesa?
Serão os interesses das editoras, por muito respeito que me mereçam (e merecem), absolutamente determinantes para condicionarem decisões de amplo alcance e alargado espectro cultural?
E podem alguns portugueses persistir em encarar o Brasil como um parceiro menor neste processo ou até como um inimigo?
É curial ou inteligente ignorar o muito que o Brasil faz, por muitas vias, para a afirmação internacional da Língua Portuguesa?
É politicamente acertado ignorarmos a crescente aproximação, em vários domínios e também no do idioma, dos países africanos de língua oficial portuguesa em relação ao Brasil?
Mais uma pergunta: se no futuro os países africanos de língua oficial portuguesa e também o Brasil, se entenderem quanto à adopção de uma ortografia comum, em que posição fica Portugal?
E por fim: tem Portugal o direito de colocar obstáculos, as mais das vezes artificiais ou fundados em interesses económicos, a um entendimento que não afecta identidades nem legítimas singularidades linguísticas?
5.Posto isto, enuncio algumas questões impertinentes e uma traumática. E fá-lo-ei tentando seguir uma trajectória que vai do particular para o geral.
Primeira questão: a das deficiências do Acordo Ortográfico, que é também a das imperfeições da língua. As línguas não são entidades perfeitas; nenhuma língua o é, antes de mais porque qualquer língua é um produto dos homens – que são seres imperfeitos. Projectam-se nas línguas pequenas incoerências e discretas contradições, discrepâncias e dúvidas persistentes. Por isso mesmo, existem instrumentos de regulação e de clarificação (dicionários, gramáticas, prontuários, etc.) que nos ajudam a lidar com as dificuldades, com as excepções e com as imperfeições das línguas. Imperfeições que, note-se, são muitas vezes o saboroso tempero estilístico que os idiomas nos reservam. Em certos momentos, procuramos, invariavelmente de forma árdua e não raro controversa, estabilizar a língua, sabendo que o fazemos sempre de forma algo artificial, para tentarmos disciplinar um bem que não é individual, mas colectivo.
Foi assim em 1990, quando um grupo de reputados académicos, linguistas e historiadores da cultura propuseram um acordo ortográfico que superava, corrigindo-a, uma proposta anterior (de 1986), porventura excessivamente “interventiva” e redutora (a propósito: alguns testemunhos que hoje são citados como reportando-se ao acordo de 1990 referem-se ao de 1986. Basta verificar as datas; e é bom ser rigoroso com elas).
Falo aqui de incoerências linguísticas não com um sentido reprovativo (que seria absurdo), mas tão-só para notar que elas são naturais e toleráveis. No Português que hoje escrevemos (repito: no de agora, não ainda no que virá depois do Acordo!), grafo “erva”, “herbário”  e “ervanário”, ou seja, avanço e recuo, em palavras da mesma família etimológica, em relação ao uso ou ao desuso do “h” inicial; e o mesmo “h” desapareceu já em “desumano” (tendo persistido em “humano”), sem ofensa da etimologia, num acto de simplificação que aceitamos sem pestanejar. Mais: no Português actual, mantemos a consoante surda em “acto”, mas já a dispensámos em “contrato” e em “aflito” (antes, “aflicto”); perdemo-la em “prático”, mas conservamo-la em “eléctrico” ou em “ecléctico”. Escrevemos “pronto” (e já não “prompto”), mas parece que alguns resistem em passar a escrever “perentório” em vez de “peremptório”, usando ainda aquele “p” (que ninguém pronuncia) bem à vista. E abundam as homografias, tratando o contexto de desfazer eventuais confusões: escrevo “gelo” (substantivo) e “gelo” (do verbo gelar), sem necessidade de acento gráfico para sabermos onde está o “e” aberto e onde está o fechado; e “consolo” (substantivo) e “consolo” (“eu consolo”, do verbo “consolar”) e “colher” (de chá ou outra) e “colher” (verbo); e “acordo” (ortográfico, pois então) e “acordo”, como verbo (por exemplo: “acordo para as vantagens do acordo ortográfico”). E há o famoso hífen: insistimos nele nas formas monossilábicas “hei-de” e “há-de”, mas não fazemos questão nele em “havia de”.
Repito: estes são exemplos de discrepâncias no Português actual, não ainda o efeito da aplicação do Acordo Ortográfico. Não percebo por que razão os detractores do dito Acordo se não escandalizem com tais coisas, mas são capazes de verberar as oscilações (em menor grau, diga-se) que ele consente.
6. Segunda questão: a questão dos escritores ou a enganosa apologia da liberdade linguística.
Não raro ouvimos fazer a apologia da irrestrita diferenciação, dentro do vasto universo linguístico do Português. E ao valorizarmos o enriquecimento idiomático determinado pelos usos “excêntricos” (num sentido não depreciativo) do Português, erigimos esse poder criativo em regra (ou melhor: anti-regra), no limiar da total desregulação. É aqui que entra a questão dos escritores e da sua natural vocação para a subversão linguística; só que a criatividade linguística de Ondjaki, de Mia Couto, de Lobo Antunes ou de Raduan Nassar  desenvolve-se no quadro  da criação literária, lá onde as normas morfossintácticas, os repertórios lexicais ou as convenções semânticas podem ser livremente subvertidos, sem controlo que se tolere.  E também, se assim o desejarem a própria ortografia.
Dir-se-á (e é verdade) que aquela vocação subversiva é quase sempre inspirada pela capacidade de “escutar” a vibração da língua viva, com incorporação literária de elementos dialectais e de variações sociolectais;  a isto acrescento que aquilo que a literatura  deforma ou refigura, pela sua  dinâmica inovadora, só lenta e cautelosamente é ratificado pelo uso colectivo, sempre apoiado em instrumentos normativos. São eles que, por fim e goste-se ou não, asseguram a coesão possível do idioma que, sem essa coesão, teria tantas “normas” quantos os seus falantes. E isto também no campo da ortografia.
7. Terceira questão: a questão da indústria editorial ou a impertinente injunção económica. Trata-se aqui de saber que instância nos rege, quando está em causa uma decisão como a de levar à prática o Acordo Ortográfico: a instância dos interesses económicos ou a instância das prioridades de política de língua.
Antes de passar adiante e sem falsa retórica, declaro: tenho o maior respeito pelos editores sérios, aqueles que encaram os textos  (às vezes, os meus textos) como veículos de cultura que é preciso editar com competente zelo e mesmo, quando é o caso, reeditar. Digo reeditar e não apenas reimprimir, porque às vezes é preciso corrigir, acrescentar, suprimir. Só que, agora que os procedimentos de reprodução dos textos uma vez editados se tornaram extraordinariamente sofisticados e de muito célere activação (o que não se verificava há meio século),  é forte a tentação para reutilizar para todo o sempre matrizes tipográficas que, na prática, tornam os textos imutáveis. É rápido, é barato e favorece o negócio, coisa que até seria de louvar (digo-o sem reservas), se não fosse o caso de assim se tender a “mumificar” a língua. Facilmente se percebe que alterações, mesmo que modestas, na ortografia obrigam a encarar de outro modo a edição de um texto: obrigam a reeditar e não apenas a reimprimir.
Parece, além disso, que a indústria cultural portuguesa, com a vigência do Acordo, enfrenta dois problemas — e isto talvez explique algumas resistências e não poucos protestos. Um desses problemas chama-se mercado africano, um mercado até agora “blindado” pelo uso da grafia portuguesa e fechado à variante brasileira do Português. O outro problema vem do poder económico das editoras brasileiras,  aparentemente ameaçadoras para a indústria editorial portuguesa. É isto que me dizem, porque, por mim, não vejo as coisas assim. Pelo contrário: acho que as editoras portuguesas têm argumentos para fixar ou (se for o caso) reconquistar o mercado africano; e penso que uma grafia comum (excepções à parte) a todos os países de língua oficial portuguesa, abrirá um mercado muito amplo para a edição portuguesa, com destaque para o gigantesco mercado brasileiro.
De resto, esta questão dos editores pode bem ser uma falsa questão. Não é verdade que uma editora, em Portugal, já publicou um dicionário segundo a grafia do Acordo? Terá essa editora o exclusivo do dinamismo editorial? Não será este um exemplo a seguir? E não é verdade que alguns editores já se manifestaram preparados (um deles, embora adversário do Acordo, disse-mo expressamente) para os desafios que aí vêm?
Todas as contas feitas, não partilho do apocalíptico pessimismo dos que profetizam uma hecatombe bibliográfica, com milhões (assim mesmo) de livros “lançados ao lixo”, por causa das mudanças trazidas pelo Acordo, mudanças que, para alguns, umas vezes são excessivas, outras vezes são meramente residuais, dependendo das ocasiões. Não haverá tal hecatombe; nunca se viu nem verá tal coisa, porque um generoso período de transição assegurará o pacífico convívio de livros pré-Acordo com livros pós-Acordo. Há memória de alguma biblioteca ter sido destruída quando o Acordo de 1945 entrou em vigor em Portugal? Alguém inutilizou algum livro quando passou a escrever “aflito” em vez de “aflicto”, “quer” em vez de “quere”? E foi impossível fazer conviver por algum tempo as grafias “mãi” e “mãe”?
Se olharmos estas questões com honesta serenidade e não com demagógico impulso catastrófico, não seremos ludibriados por  “exercícios”  como aquele que agora nos foi facultado, pomposamente chamado “estudo”. Comparam-se traduções, feitas respectivamente no Brasil e em Portugal, de duas obras originalmente em língua inglesa, com o intuito de provar quão diferentes são as duas variantes do Português, a portuguesa e a brasileira. E comparou-se a versão original de um livro de Paulo Coelho (O Diário de um Mago) com uma versão adaptada do mesmo livro, em Portugal. O que se provou? O que já se sabia: que duas traduções do mesmo texto são sempre inevitavelmente diferentes;  que um escritor que assim se deixa adaptar não é escritor que se preze (isto até já se sabia, antes do tal exercício); por fim, que o léxico e a sintaxe do Português de Portugal e do Português do Brasil revelam singularidades próprias. Quanto à questão ortográfica — nada.
8. Quarta questão: a questão dos brasileiros, questão que inclui  traumas por resolver e o medo das “cedências”. Isto para já não falar num outro “argumento” que de vez em quando ainda assoma: o de que por causa do Acordo Ortográfico passaríamos a “falar como os brasileiros”. “Como os brasileiros” fala-se nas telenovelas da Globo, sem escândalo público e até com notórias consequências lexicais, se olharmos com atenção para o Português que se fala em Portugal. Vale a pena repetir o óbvio: um acordo ortográfico não implica que se fale como os brasileiros; as suas consequências, no plano fonológico (no do sotaque, para nos entendermos), são praticamente nulas e inexistentes, no domínio da sintaxe. Ou seja: naqueles âmbitos em que os brasileiros “falam como brasileiros”.
Há um complexo que, no fundo, persiste entre nós: o de uma concepção da Língua Portuguesa como património exclusivo dos portugueses. Ora não só o idioma não é propriedade exclusiva dos portugueses como o seu futuro depende (e muito) da capacidade de afirmação internacional de um país com o potencial económico e geopolítico do Brasil. Por isso mesmo, bom seria que uníssemos esforços (que nos puséssemos de acordo), em vez de cavarmos discrepâncias baseadas em traumas por superar.
Os traumas antibrasileiros são intoleráveis e absurdos, sobretudo quando temos presente o notável exemplo de cooperação de dois eminentes linguistas, um português e um brasileiro, Celso Cunha e Lindley Cintra, que escreveram a modelar  Nova Gramática do Português Contemporâneo. E quem tiver dúvidas acerca da dimensão científica e cultural do Brasil, faça o favor de consultar World Ranking of Universities (em http://www.webometrics.info/); aí verá que a primeira universidade de língua portuguesa é a Universidade de São Paulo, no lugar 114; a segunda é a Universidade de Campinas (Unicamp), no lugar 197; e a primeira universidade portuguesa (a Universidade Técnica de Lisboa), surge num honroso 300.º lugar, um pouco antes da minha alma mater, a Universidade de Coimbra, no 375.º lugar. É preciso dizer mais?
9. Por fim, quinta e última questão, a questão do espanhol e do inglês ou as comparações absurdas.
Ouço dizer: o Inglês  não tem acordo ortográfico e passa muito bem sem ele. Omite-se aqui que as oscilações ortográficas em Inglês (que, aliás, estão dicionarizadas) são muito reduzidas e também que, nele, a relação entre grafia e pronúncia é muito mais convencionada do que em Português; e falta  aprofundar  um pouco a questão, para chegarmos a uma resposta  óbvia: o Inglês não tem acordo ortográfico, porque simplesmente não precisa dele. E não precisa porque o seu esmagador poder linguístico é sobretudo um efeito de outros poderes que arrastam e praticamente impõem aquele poder linguístico: o poder político, o poder económico, o poder tecnológico, o poder cultural, etc. Numa palavra: o poder.
No caso do  Espanhol  importa ir um pouco mais longe e  lembrar que  a emancipação política da América Latina de colonização espanhola conduziu à fragmentação em cerca de uma vintena de países. Isso permitiu a sobrevivência de Espanha como uma espécie de “metrópole” europeia  com um certo ascendente  no plano linguístico; um ascendente que se reforça pelo labor de uma vigorosa política de difusão da língua, com a qual Portugal muito tem a aprender. Nessa política de língua intervém  a Real Academia Española, sendo inequívoco que esta última tem, no universo da Língua Espanhola, um prestígio normativo considerável: tenha-se em vista a capacidade de determinação e também de incorporação lexical que o Diccionario de la Lengua Española  possui, no vasto universo que cobre; uma capacidade de determinação que, evidentemente, vale por um amplo, tácito e respeitado acordo linguístico. Acresce a isto que, nos nossos dias, a Espanha é também uma potência económica, o que ajuda a fazer do Espanhol (e já não apenas naquele vasto espaço post-colonial, note-se) uma espécie de “inglês latino”.
10. Termino. Torna-se absolutamente necessário que a questão do Acordo Ortográfico seja equacionada não apenas de dentro para dentro (como alguns fazem em Portugal), mas sobretudo de dentro para fora. Ou seja: pensando o Português em função de um mundo mais amplo do que o país que lhe deu origem. E sendo assim, que a questão seja vista também como um desígnio colectivo e não reduzida à estreita defesa de interesses particulares ou à expressão de sensibilidades irritadas. O que está em causa é um acordo estratégico, não uma unificação linguística absoluta, do mesmo modo que pensar uma língua sem regulação é convidar à sua rápida fragmentação. Seguramente, não é isso que queremos.

(1) Cf. A Língua como Factor de Unidade, Coimbra,1968, p. 12

(2) Nova Gramática do Português Contemporâneo. 17.ªed., Lisboa: Edições João Sá da Costa: 2002, p. XIV

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