A Falácia das Consoantes Mudas Diacríticas

Entre os argumentos contra o AO90, é habitual ler e ouvir que a eliminação das consoantes mudas significou também a eliminação de um sistema diacrítico que servia para assinalar o grau de abertura de vogais átonas nas pronúncias portuguesas.

O pressuposto de que as consoantes mudas assinalavam a abertura de vogais átonas é uma falácia que se desmonta com razões de ordem genérica e específica, designadamente:


  • 1. Existem palavras pronunciadas em Portugal com pré tónica fechada apesar de na norma anterior ao AO90 terem uma consoante muda que, supostamente, deveria servir para abrir essas vogais. 
Exemplos: aCtividade, aCtual, aCtriz, caraCteres, exaCtidão, taCtear.

Caso as consoantes mudas abrissem vogais átonas, as palavras referidas não seriam pronunciadas com átona fechada.




  • 2. Existem palavras pronunciadas em Portugal com vogal átona aberta sem que seja necessária a existência de uma consoante muda que indique a pronúncia correta: 
Exemplos: Abreu, agachar, aguadeiro, além, amestrar, aquecer, aquém, arrefecer, Aveiro, (Leça do) Balio, bebé, beldroega, Belgrado, Belver, brejeiro, Camões, caveira, colação, corar, credor, delação, Delfim, delgado, dilação, doninha, ebulição, enfezar, entrevado, enxovia, esfomeado, especar, especular, Esposende, esquecer, felpudo, frecheiro, freguesia, ganhar, geração, ilação, inflação, invasão, Lordelo, Melgaço, mestrado, mezinha, Mortágua, obeso, obrigado, opaco, oração, ortografia, padeiro, pateira, pateta, quaresmal, Queluz, relator, relaxar, relvado, república, retaguarda, retórica, retrovisor, Resende, sadia, saguão, salgado, sarmento, supletivo, vadio, vedor, vereador, vexame.

Caso as consoantes mudas abrissem efetivamente vogais, as palavras acima indicadas seriam pronunciadas em Portugal com pré átona fechada.



  • 3. A pronúncia é uma herança fonética que antecede a aquisição de competências ortográficas e sobrevive a ela. Só assim se entende que existam tantas diferenças de pronúncia em Portugal apesar toda a população ter estado sempre sujeita a uma mesma norma ortográfica a cada momento.
Exemplos:  
em algumas zonas do país pronuncia-se "labar" apesar de todos escrevermos "lavar";
a palavra "peixe", assim escrita há séculos em Portugal, é pronunciada de três formas distintas: "pêxe", "pâixe" e "peixe"; o mesmo para "aldeia" e centenas de outras.

Portanto, como podem consoantes mudas condicionar aquilo que consoantes e vogais pronunciadas não conseguem condicionar?


  • 4. No século 16 foi iniciada a introdução gradual na ortografia portuguesa de consoantes mudas de origem latina e de grafemas de origem grega por motivações de erudição etimológica e sem qualquer expetativa de consequências fonéticas. No entanto, o processo de fechamento de vogais pré tónicas só começou a ocorrer nas pronúncias portuguesas no século 17, já depois da presença de consoantes mudas na ortografia.
A introdução de consoantes mudas na ortografia a partir de meados do século 16 não impediu o posterior fechamento das vogais pré tónicas, portanto, muito menos poderá a eliminação das consoantes mudas interferir na eventual continuação do processo de fechamento de vogais.



  • 5. A reforma ortográfica de 1945 e a reforma ortográfica de 1973 determinaram a eliminação de acentos que assinalavam o grau de abertura excecional de algumas vogais tónicas e átonas. Décadas depois da eliminação desses acentos, a pronúncia mantém-se apesar da ausência de diacrítico que auxilie o leitor na determinação da abertura correta das vogais.
Exemplos: fôrma, diàriamente, pôrto, prègar, sêco, sêde, sòzinho.

Se em cinco a sete décadas a ausência destes diacríticos não afetou a pronúncia, como pode tal acontecer com a atual eliminação das vogais mudas supostamente diacríticas?



  • 6. O conceito "consoante muda diacrítica" foi criado artificialmente pela Reforma Ortográfica de 1911 ao determinar a eliminação de todas as consoantes mudas exceto aquelas que seguiam vogais átonas abertas.
Desta "engenharia" ortográfica resultou uma correlação estatística entre vogais átonas abertas e consoantes mudas que nunca tinha existido na história da ortografia portuguesa. 
Não podemos confundir uma correlação estatística criada artificiosamente com uma valia ortográfica.

Para saber mais veja A Origem das "consoantes mudas diacríticas".

3 comentários:

  1. Como se diz então, espetáculo? Espetáculo, ou espétáculo? E se assim se abre o e, onde está a regra gramatical que o define?

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    1. Costa,

      Respondo-lhe com a sua pergunta:
      "Como se diz então, "especulação"? E "aquecer"? E "república"?. E se assim se abre o e, onde está a regra gramatical que o define?"

      Agora pergunto eu: porque é que vc acha que estes exemplos de átona aberta anteriores ao AO90 são bons, perfeitos e imutáveis e o "espetáculo" não?

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    2. O que muita gente parece ignorar é que a abertura ou fechamento das vogais não é normalmente indicada pela ortografia portuguesa. Repare-se por exemplo em "colher" (verbo) e "colher" (utensílio), que nunca precisaram de diacríticos para indicar a pronúncia. Parece-me que esta falácia decorre em parte do facto de em alguns casos, certo minoritários mas muito visíveis, o acento ser usado para esse efeito ("da" e "dá", "e" e "é"). A incoerência da ortografia portuguesa neste aspeto parece-me estar por trás deste mal-entendido.

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