dezembro 29, 2011

Jorge Miranda em Português Grande (1)

Extratos de artigo de opinião do constitucionalista Jorge Miranda publicado no jornal Público de 2011julho13:


Tenho lido neste jornal, ultimamente, vários artigos a atacar o Acordo Ortográfico e a pedir que seja suspensa a sua aplicação. Não posso concordar.
Não sou especialista em linguística e não pretendo que o Acordo seja perfeito. Contudo, o que está em causa situa-se muito para além de qualquer deficiência ou erro que contenha ou de qualquer gosto estético. O que está em causa é a afirmação da língua portuguesa como grande língua internacional – a terceira língua de matriz europeia mais falada e falada em quatro continentes; e, para esse efeito, uma ortografia com um mínimo de diferenças revela-se indispensável.
Por que razão havia de ser o português europeu a determinar a língua escrita em confronto com o português do Brasil, usado por quase 200 milhões de pessoas? Pretendê-lo seria totalmente inviável e acabaria por reduzir o português europeu à dimensão do húngaro, do checo ou do sueco, quando, bem pelo contrário, se mostra também necessário afirmar o português, o português internacional, na União Europeia. E não houve reformas muito mais radicais de ortografia do que esta, a começar pela precipitada reforma de 1911, que provocou o corte com o Brasil? Espero bem, por isso, que finalmente, em 1 de Janeiro de 2012, se cumpra o que foi convencionado há mais de 20 anos!
A verdadeira defesa do português não pode consistir no conservadorismo ortográfico, mas sim na exigência da qualidade do seu ensino e da sua prática na comunicação social, no ensino universitário por professores portugueses para alunos portugueses em português (ao contrário do que sucede em algumas faculdades), no não uso de designações estrangeiras, em suma, na aplicação rigorosa do art. 11.º da Constituição, que o declara língua oficial da República.

Fonte.

Rui Zink em Português Grande

Extrato de entrevista de Rui Zink ao Jornal do Fundão de 2010março31 (transcrição ortográfica atualizada):

Jornal do Fundão: E é preciso tanto “barulho” sobre o novo acordo ortográfico?
Rui Zink: Sou completamente a favor. Nós não somos os donos da língua... a única forma de evitar que a língua que nós falamos passe a ser uma espécie de mirandês, muito bonito, com interesse arqueológico, mas sem projeção internacional, é colarmo-nos ao Brasil. Quando as pessoas dizem “ai, mas nós é que falamos o bom Português”, eu não sabia que em Portugal havia tanta gente a falar bom português, a escrever bom português, a ler bom português e não sabia que nós tínhamos exatamente o mesmo sotaque de São Miguel ao Porto....
Houve uma coisa que me horrorizou... Há uns três anos fui a Paris e vi um dicionário “Francês - Brasileiro” e logo na introdução diziam que o português de Portugal já não tem nada a ver com o português do Brasil... Já são duas línguas completamente opostas. É evidente que a França aqui, embora seja nossa amiga, é rival. E eu tive oportunidade numa conferência que dei a certa altura dizer: “ah, pois, eu no outro dia estava com uns senhores que estavam a falar senegalês”. E aí os franceses levantaram-se logo a dizer “não é senegalês, é francês”... E eu disse: “Oh meus filhos da p***, se vocês falam do brasileiro e do português, então, também há o senegalês”. Quando o nosso adversário nos quer dividir, acho um tiro no pé este nacional-patriotismo em relação à ortografia perfeita, até porque nós não usamos a mesma ortografia que o Fernando Pessoa usou. Uma pessoa habitua-se.
JF: Acha, então, que Vasco Graça Moura, entre outros, está a fazer muito “barulho” por nada?
RZ: Acho que Vasco Graça Moura já tinha um ódio ao português visível na sua obra. E agora tem mais. Só o revelou, veio à tona.

Fonte

José Mário Costa: "Alguns pontos nos ii sobre o Acordo Ortográfico

Opinião de José Mário Costa (*) publicada no jornal Público a 2010-01-04.
Em editorial da passada sexta-feira, 30/12/2009, sobre as razões de o PÚBLICO rejeitar o Acordo Ortográfico, entre os vários argumentos a seu favor considerados "utópicos", quem o escreveu destaca um "particularmente incompreensível". Este: "O de que o português, sem o acordo, terá não duas ortografias oficiais, mas oito, e que tal não pode acontecer numa língua que se pretende universal." A frase é uma transcrição deturpada de uma declaração minha, citada no trabalho assinado pela jornalista Alexandra Prado Coelho, sobre a aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal, desse mesmo dia. O que eu disse, e reafirmo, faz a sua diferença - ou seja, que, sem um acordo, o português arrisca-se a ter não duas ortografias oficiais, mas oito. Longe de mim entrar nessa utopia de fazer compreender o que não se quer perceber, de todo. No entanto, como se invocou o recorrente caso do inglês, conviria pôr aqui alguns pontos nos ii.
1. Nenhuma língua actual, aspirando a estatuto universal e com pretensões a idioma de trabalho nas instâncias internacionais (a começar na ONU), acolhe duas ortografias oficiais. O inglês tem uma, e só uma, ortografia oficial, fixada para todos, repito, todos os países anglófonos. E fixou-a ainda antes do século XX, pelas razões políticas, históricas e culturais mais do que consabidas. É este o equívoco - para não lhe chamar outra coisa - de quem escreveu o editorial do PÚBLICO e, afinal, de quantos insistem nesta tecla da mais primária oposição ao Acordo Ortográfico.
2. A língua portuguesa está fixada em duas normas ortográficas: a do português do Brasil e a do português europeu - cada uma com o seu vocabulário e dicionários específicos, com termos que são legais só no respectivo país. Nada disto acontece com o inglês. Nele só há uma norma ortográfica, que, nos seus dicionários estruturantes, vai consagrando e validando, em todo o espaço anglófono, a dupla grafia numa série de palavras escritas diferentemente em Inglaterra, nos EUA ou na Austrália, por exemplo. E o mesmo se passa com o espanhol ou com o francês, cujos dicionários incluem todas as variantes da hispanofonia e da francofonia, respectivamente.
3. Não é, pois, a existência das duplas grafias que anula a necessidade de um mesmo e único tronco ortográfico para os oito países de fala comum portuguesa. E é precisamente por isso que a situação do português nada tem que ver com a do inglês. Nenhuma ONU, nenhuma UNESCO, nem nenhum leitorado no Japão, na China ou no Uruguai se debate com o problema da língua portuguesa: qual, afinal, a ortografia (oficial, repito) adoptada - a de Portugal, ou a do Brasil? Nada tem que ver com o inglês, nem com espanhol, nem com o francês, nem com o italiano, nem com o alemão - isto para nos circunscrevermos, apenas, à Europa.
4. Este é um problema acrescido com a emergência dos demais países de língua oficial portuguesa, pós-independências. Qualquer deles pôde seguir a ortografia que muito bem entendeu, não sendo porém aceite essa grafia nos demais países da lusofonia. Por exemplo, Angola, onde se passou a usar o k e o w, nomeadamente nos antropónimos e nos topónimos - à revelia das ainda em vigor regras ortográficas da reforma de 1945. E se Portugal e o Brasil fixaram normas diferenciadas na sua ortografia oficial, porque não hão-de seguir o mesmo rumo os países africanos e Timor? Com que consequências para a projecção da nossa língua comum, internacionalmente? E teríamos, então, uma língua comum, ou, antes, várias línguas cada vez mais diferenciadas entre si? E, neste contexto, o português de Portugal não correria o risco de se transformar numa espécie de arcaísmo decorativo da lusofonia?
5. Quem está contra o Acordo Ortográfico, este ou qualquer outro, estará até ao fim dos seus dias. É um direito respeitável (tal como o de Fernando Pessoa, que, no seu tempo, rejeitou passar a escrever "filosofia", em vez de "philosophia"...). Ainda não se percebeu é que o Acordo Ortográfico, ratificado e promulgado já por seis dos oito países da CPLP, é uma inevitabilidade. Ainda bem - para bem, e orgulho, da minha língua, que há muito extravasou este nosso rectangulozinho de 10 milhões de falantes, catapultando-a para língua verdadeiramente comum de mais de 200 milhões de pessoas. E cuja locomotiva deixou há muito de ser Portugal.
6. A existência de uma língua verdadeiramente comum pressupõe que as várias variantes sejam legalizadas para toda a lusofonia, o que exigiu um acordo. Para que essas variantes fossem reduzidas ao mínimo indispensável foram necessárias cedências a uma grafia comum em Portugal (ex.: consoantes mudas) e no Brasil (ex.: acentos ortográficos vários), o que exigiu também um acordo.
7. Ainda bem - digo eu, que até preferia um Acordo Ortográfico mais ousado, nomeadamente na simplificação das regras do uso do hífen. E que a sua aplicação, no meu país, fosse bem mais criteriosa e não tanto ao sabor de interesses comerciais sem regulação nenhuma. Mas, para isso, era preciso que, em Portugal, a língua fosse tratada como é em Espanha ou no Brasil: uma questão estratégica de Estado, esteja quem estiver no poder.

(*) Jornalista, fundador e coordenador do site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

Fonte.

Mais opinião publicada.

Fernando Alves Cristóvão; entrevista

Comentários de Fernando Alves Cristóvão (professor catedrático de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) sobre o AO90, recolhidos em 2008maio15:




Mais opinião publicada.

Carlos Reis: "Para além de Portugal"


Comunicação do professor Carlos Reis lida na Audição Parlamentar sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, promovida pela Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da Republica, em Lisboa, no dia 7 de abril de 2008.

O texto citado é apresentado na norma ortográfica em que foi redigido.

1. Começo por três afirmações preliminares.
Primeiro: uma declaração de desinteresses. Não tenho interesses económicos, dependências políticas ou outras, quando me dedico a analisar a questão do Acordo Ortográfico; aliás, as minhas posições nesta matéria não são novas, já que as defendo desde 1990.
Segundo: uma declaração de interesse. Debato o Acordo Ortográfico porque me interessa a Língua Portuguesa e preocupa-me o seu destino, também à escala internacional.
Terceiro: uma declaração de índole ético-cultural, dividida em três frentes. Uma, que é a do respeito que igualmente me merecem todos os países onde o Português é língua oficial; outra, que é da  honestidade intelectual que preside às minhas reflexões sobre este tema; uma outra ainda, que a da afirmação, relativamente a este tema, de convicções fortes, mais do que de certezas dogmáticas ou aspirações a ser dono da verdade.
2. Posto isto, começo. Existe uma contradição  curiosa entre a forma como vivemos a nossa relação com a língua e os termos em que a postulamos como património colectivo. Essa contradição estabelece-se pela tensão entre duas tendências antagónicas.
Por um lado, acentuamos a relevância de um uso do idioma dominado pela criatividade individual e pela propensão para introduzir na língua elementos de diferenciação, sobretudo no léxico, mas também, algumas vezes, no que toca às articulações fonológicas — ou à “pronúncia”, para nos entendermos. Já quanto à ortografia, o caso muda de figura: impera nela uma estrita consciência do erro, apoiada por instrumentos — p. ex., os prontuários ou os correctores informáticos — que servem para regular as grafias.
No pólo oposto, está o comprazimento com que proclamamos o Português como factor de agregação do mundo “lusófono”, composto por uns supostos cerca de 200 milhões de falantes. A magnitude de um tal universo dá que pensar; e é evidente que ele se configura a partir de um património linguístico comum, cuja unidade, contudo, é relativa, como, de resto, sempre acontece em circunstâncias e em legados culturais semelhantes. Aqui vale a pena introduzir desde já uma destrinça: unidade não significa unicidade, confusão que alguns se esforçam por disseminar porque não leram o que foi escrito por Herculano de Carvalho (“Unidade não significa (…) uniformidade”(1)) ou por Celso Cunha e Lindley Cintra, ao afirmarem “a superior unidade da língua portuguesa dentro da sua natural diversidade”(2).
E todavia, parece óbvio que, num mundo reconhecido como globalizado, a consolidação de grandes blocos geo-culturais pode ajudar a salvaguardar interesses comuns, bem como singularidades no interior desses blocos, em domínios que estão para além da língua, mas que com ela se articulam: na literatura, nos negócios, na diplomacia, nas organizações internacionais, na ciência, etc.  E contudo, no caso de um idioma com o trajecto histórico do Português (poderei voltar a isto, para desarmadilhar as absurdas comparações do costume, com o espanhol e com o inglês),  essa consolidação não se faz sem instrumentos reguladores. Como quem diz: há idiomas cuja afirmação depende também de opções estratégicas que ajudem a compensar o poder hegemónico de duas ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global. Sabemos bem quais são essas línguas, nos nossos dias (o inglês, o espanhol); supõe-se que, no futuro, serão também o mandarim e o árabe.
3. É no equilíbrio instável entre uma tendência inovadora (ou “libertária”) e uma tendência reguladora (ou “normalizadora”) que as grandes línguas de cultura vão fazendo o seu caminho; e é da gestão daquele equilíbrio que depende a possibilidade de um idioma como o Português preservar alguma coesão, sem prejuízo da tal criatividade. Sabem-no bem os professores que quotidianamente convivem com a necessidade de explicar aos seus alunos que a famosa pontuação de José Saramago ou o léxico de Guimarães Rosa têm razões literárias que a razão gramatical e vernacular desconhece; e sabe-se bem que escritores que hoje são clássicos (um Garrett ou um Eça), no seu tempo foram algumas vezes apostrofados como ignorantes do vernáculo.
Estas são as bases em que fundo a minha reflexão sobre a questão do acordo ortográfico, remetendo para questões de índole histórica, sociolinguística e político-cultural, todas conduzindo a decisões de política linguística que são determinantes para a adequada resposta solicitada por aquelas questões. A consagração de um acordo ortográfico entre os países de língua oficial portuguesa é, neste contexto, uma decisão estratégica de capital importância.
Sei bem que há razões de vária ordem que podem interpor-se entre a grande razão estratégica que motiva o acordo ortográfico e a sua efectivação. Razões de índole educativa, razões de natureza económica, razões de feição simbólica, razões afectivas, até mesmo razões técnico-linguísticas. Todas elas merecem ser apreciadas; nenhuma delas chega, só por si, para pôr em causa as consideráveis vantagens de um instrumento que seguramente ajuda a decidir esta coisa muito simples: queremos ou não queremos que a Língua Portuguesa exiba a coesão relativa que ajude a viabilizar a sua existência plurinacional, multicultural e pluricontinental, com  estatura e com estatuto na cena internacional e com as vantagens políticas, económicas e culturais daí decorrentes? Se queremos, então vamos em frente com o acordo ortográfico; se não queremos, então esqueçamos o acordo ortográfico. Só que, depois, não haverá legitimidade para queixas, se o isolamento linguístico português (ou seja: dos portugueses) vier a ser o último reduto dos lusitanos encerrados numa recôndita aldeia resistente à mudança e ao moderado reajustamento da ortografia. Falo, evidentemente, pensando no horizonte de décadas ou de séculos, não tanto olhando para o imediatismo dos negócios em curso e dos seus pontuais ganhos e perdas.
4. Chegado a este ponto, lembrarei algumas coisas simples, mas nem sempre presentes nesta discussão.
Primeira coisa simples: um acordo é, por natureza, um acto positivo, envolvendo um sentido de entendimento que importa enaltecer e não menosprezar.
Segundo: um acordo não é uma dogmática unificação de procedimentos, é um encontro de vontades, fundado no reconhecimento da dignidade das partes, sem preconceitos, complexos ou reservas mentais.
Terceiro: um acordo, por ser um entendimento, implica disposição para o diálogo e para abertura, não o fechamento em comportamentos autistas.
Quarto: um acordo implica também o pragmatismo que leva a que se concorde no que é possível concordar, sem prejuízo de diferenças que não põem em causa o essencial da concordância.
Por fim: se um acordo incide na ortografia, então reconheça-se que ele visa aquele domínio linguístico que é mais convencional e susceptível de reajustamentos rapidamente incorporados pelo uso e sobretudo pelas crianças, que são os falantes do futuro. Não tenham receio os educadores: o que está em causa neste acordo ortográfico é aproximar a grafia da articulação fonológica (aproximar, não identificar) ou, noutros termos, o modo como escrevemos do modo como falamos. Já o perguntei e repito-o agora: há alguma ofensa cultural, se passo a escrever “elétrico” em vez de “eléctrico”? Houve desrespeito pelo idioma de Alexandre Herculano, pelos legisladores do Liberalismo ou pelos cidadãos letrados seus contemporâneos, quando passámos a escrever-se “fósforo” ou “exausto”, em vez de “phosphoro” ou “exhausto”?
A estas perguntas acrescento outras que, para mim, são claramente retóricas.
Primeira pergunta: deve Portugal manter-se agarrado a uma concepção conservadora da ortografia, como se ela fosse o derradeiro baluarte da identidade portuguesa?
Serão os interesses das editoras, por muito respeito que me mereçam (e merecem), absolutamente determinantes para condicionarem decisões de amplo alcance e alargado espectro cultural?
E podem alguns portugueses persistir em encarar o Brasil como um parceiro menor neste processo ou até como um inimigo?
É curial ou inteligente ignorar o muito que o Brasil faz, por muitas vias, para a afirmação internacional da Língua Portuguesa?
É politicamente acertado ignorarmos a crescente aproximação, em vários domínios e também no do idioma, dos países africanos de língua oficial portuguesa em relação ao Brasil?
Mais uma pergunta: se no futuro os países africanos de língua oficial portuguesa e também o Brasil, se entenderem quanto à adopção de uma ortografia comum, em que posição fica Portugal?
E por fim: tem Portugal o direito de colocar obstáculos, as mais das vezes artificiais ou fundados em interesses económicos, a um entendimento que não afecta identidades nem legítimas singularidades linguísticas?
5.Posto isto, enuncio algumas questões impertinentes e uma traumática. E fá-lo-ei tentando seguir uma trajectória que vai do particular para o geral.
Primeira questão: a das deficiências do Acordo Ortográfico, que é também a das imperfeições da língua. As línguas não são entidades perfeitas; nenhuma língua o é, antes de mais porque qualquer língua é um produto dos homens – que são seres imperfeitos. Projectam-se nas línguas pequenas incoerências e discretas contradições, discrepâncias e dúvidas persistentes. Por isso mesmo, existem instrumentos de regulação e de clarificação (dicionários, gramáticas, prontuários, etc.) que nos ajudam a lidar com as dificuldades, com as excepções e com as imperfeições das línguas. Imperfeições que, note-se, são muitas vezes o saboroso tempero estilístico que os idiomas nos reservam. Em certos momentos, procuramos, invariavelmente de forma árdua e não raro controversa, estabilizar a língua, sabendo que o fazemos sempre de forma algo artificial, para tentarmos disciplinar um bem que não é individual, mas colectivo.
Foi assim em 1990, quando um grupo de reputados académicos, linguistas e historiadores da cultura propuseram um acordo ortográfico que superava, corrigindo-a, uma proposta anterior (de 1986), porventura excessivamente “interventiva” e redutora (a propósito: alguns testemunhos que hoje são citados como reportando-se ao acordo de 1990 referem-se ao de 1986. Basta verificar as datas; e é bom ser rigoroso com elas).
Falo aqui de incoerências linguísticas não com um sentido reprovativo (que seria absurdo), mas tão-só para notar que elas são naturais e toleráveis. No Português que hoje escrevemos (repito: no de agora, não ainda no que virá depois do Acordo!), grafo “erva”, “herbário”  e “ervanário”, ou seja, avanço e recuo, em palavras da mesma família etimológica, em relação ao uso ou ao desuso do “h” inicial; e o mesmo “h” desapareceu já em “desumano” (tendo persistido em “humano”), sem ofensa da etimologia, num acto de simplificação que aceitamos sem pestanejar. Mais: no Português actual, mantemos a consoante surda em “acto”, mas já a dispensámos em “contrato” e em “aflito” (antes, “aflicto”); perdemo-la em “prático”, mas conservamo-la em “eléctrico” ou em “ecléctico”. Escrevemos “pronto” (e já não “prompto”), mas parece que alguns resistem em passar a escrever “perentório” em vez de “peremptório”, usando ainda aquele “p” (que ninguém pronuncia) bem à vista. E abundam as homografias, tratando o contexto de desfazer eventuais confusões: escrevo “gelo” (substantivo) e “gelo” (do verbo gelar), sem necessidade de acento gráfico para sabermos onde está o “e” aberto e onde está o fechado; e “consolo” (substantivo) e “consolo” (“eu consolo”, do verbo “consolar”) e “colher” (de chá ou outra) e “colher” (verbo); e “acordo” (ortográfico, pois então) e “acordo”, como verbo (por exemplo: “acordo para as vantagens do acordo ortográfico”). E há o famoso hífen: insistimos nele nas formas monossilábicas “hei-de” e “há-de”, mas não fazemos questão nele em “havia de”.
Repito: estes são exemplos de discrepâncias no Português actual, não ainda o efeito da aplicação do Acordo Ortográfico. Não percebo por que razão os detractores do dito Acordo se não escandalizem com tais coisas, mas são capazes de verberar as oscilações (em menor grau, diga-se) que ele consente.
6. Segunda questão: a questão dos escritores ou a enganosa apologia da liberdade linguística.
Não raro ouvimos fazer a apologia da irrestrita diferenciação, dentro do vasto universo linguístico do Português. E ao valorizarmos o enriquecimento idiomático determinado pelos usos “excêntricos” (num sentido não depreciativo) do Português, erigimos esse poder criativo em regra (ou melhor: anti-regra), no limiar da total desregulação. É aqui que entra a questão dos escritores e da sua natural vocação para a subversão linguística; só que a criatividade linguística de Ondjaki, de Mia Couto, de Lobo Antunes ou de Raduan Nassar  desenvolve-se no quadro  da criação literária, lá onde as normas morfossintácticas, os repertórios lexicais ou as convenções semânticas podem ser livremente subvertidos, sem controlo que se tolere.  E também, se assim o desejarem a própria ortografia.
Dir-se-á (e é verdade) que aquela vocação subversiva é quase sempre inspirada pela capacidade de “escutar” a vibração da língua viva, com incorporação literária de elementos dialectais e de variações sociolectais;  a isto acrescento que aquilo que a literatura  deforma ou refigura, pela sua  dinâmica inovadora, só lenta e cautelosamente é ratificado pelo uso colectivo, sempre apoiado em instrumentos normativos. São eles que, por fim e goste-se ou não, asseguram a coesão possível do idioma que, sem essa coesão, teria tantas “normas” quantos os seus falantes. E isto também no campo da ortografia.
7. Terceira questão: a questão da indústria editorial ou a impertinente injunção económica. Trata-se aqui de saber que instância nos rege, quando está em causa uma decisão como a de levar à prática o Acordo Ortográfico: a instância dos interesses económicos ou a instância das prioridades de política de língua.
Antes de passar adiante e sem falsa retórica, declaro: tenho o maior respeito pelos editores sérios, aqueles que encaram os textos  (às vezes, os meus textos) como veículos de cultura que é preciso editar com competente zelo e mesmo, quando é o caso, reeditar. Digo reeditar e não apenas reimprimir, porque às vezes é preciso corrigir, acrescentar, suprimir. Só que, agora que os procedimentos de reprodução dos textos uma vez editados se tornaram extraordinariamente sofisticados e de muito célere activação (o que não se verificava há meio século),  é forte a tentação para reutilizar para todo o sempre matrizes tipográficas que, na prática, tornam os textos imutáveis. É rápido, é barato e favorece o negócio, coisa que até seria de louvar (digo-o sem reservas), se não fosse o caso de assim se tender a “mumificar” a língua. Facilmente se percebe que alterações, mesmo que modestas, na ortografia obrigam a encarar de outro modo a edição de um texto: obrigam a reeditar e não apenas a reimprimir.
Parece, além disso, que a indústria cultural portuguesa, com a vigência do Acordo, enfrenta dois problemas — e isto talvez explique algumas resistências e não poucos protestos. Um desses problemas chama-se mercado africano, um mercado até agora “blindado” pelo uso da grafia portuguesa e fechado à variante brasileira do Português. O outro problema vem do poder económico das editoras brasileiras,  aparentemente ameaçadoras para a indústria editorial portuguesa. É isto que me dizem, porque, por mim, não vejo as coisas assim. Pelo contrário: acho que as editoras portuguesas têm argumentos para fixar ou (se for o caso) reconquistar o mercado africano; e penso que uma grafia comum (excepções à parte) a todos os países de língua oficial portuguesa, abrirá um mercado muito amplo para a edição portuguesa, com destaque para o gigantesco mercado brasileiro.
De resto, esta questão dos editores pode bem ser uma falsa questão. Não é verdade que uma editora, em Portugal, já publicou um dicionário segundo a grafia do Acordo? Terá essa editora o exclusivo do dinamismo editorial? Não será este um exemplo a seguir? E não é verdade que alguns editores já se manifestaram preparados (um deles, embora adversário do Acordo, disse-mo expressamente) para os desafios que aí vêm?
Todas as contas feitas, não partilho do apocalíptico pessimismo dos que profetizam uma hecatombe bibliográfica, com milhões (assim mesmo) de livros “lançados ao lixo”, por causa das mudanças trazidas pelo Acordo, mudanças que, para alguns, umas vezes são excessivas, outras vezes são meramente residuais, dependendo das ocasiões. Não haverá tal hecatombe; nunca se viu nem verá tal coisa, porque um generoso período de transição assegurará o pacífico convívio de livros pré-Acordo com livros pós-Acordo. Há memória de alguma biblioteca ter sido destruída quando o Acordo de 1945 entrou em vigor em Portugal? Alguém inutilizou algum livro quando passou a escrever “aflito” em vez de “aflicto”, “quer” em vez de “quere”? E foi impossível fazer conviver por algum tempo as grafias “mãi” e “mãe”?
Se olharmos estas questões com honesta serenidade e não com demagógico impulso catastrófico, não seremos ludibriados por  “exercícios”  como aquele que agora nos foi facultado, pomposamente chamado “estudo”. Comparam-se traduções, feitas respectivamente no Brasil e em Portugal, de duas obras originalmente em língua inglesa, com o intuito de provar quão diferentes são as duas variantes do Português, a portuguesa e a brasileira. E comparou-se a versão original de um livro de Paulo Coelho (O Diário de um Mago) com uma versão adaptada do mesmo livro, em Portugal. O que se provou? O que já se sabia: que duas traduções do mesmo texto são sempre inevitavelmente diferentes;  que um escritor que assim se deixa adaptar não é escritor que se preze (isto até já se sabia, antes do tal exercício); por fim, que o léxico e a sintaxe do Português de Portugal e do Português do Brasil revelam singularidades próprias. Quanto à questão ortográfica — nada.
8. Quarta questão: a questão dos brasileiros, questão que inclui  traumas por resolver e o medo das “cedências”. Isto para já não falar num outro “argumento” que de vez em quando ainda assoma: o de que por causa do Acordo Ortográfico passaríamos a “falar como os brasileiros”. “Como os brasileiros” fala-se nas telenovelas da Globo, sem escândalo público e até com notórias consequências lexicais, se olharmos com atenção para o Português que se fala em Portugal. Vale a pena repetir o óbvio: um acordo ortográfico não implica que se fale como os brasileiros; as suas consequências, no plano fonológico (no do sotaque, para nos entendermos), são praticamente nulas e inexistentes, no domínio da sintaxe. Ou seja: naqueles âmbitos em que os brasileiros “falam como brasileiros”.
Há um complexo que, no fundo, persiste entre nós: o de uma concepção da Língua Portuguesa como património exclusivo dos portugueses. Ora não só o idioma não é propriedade exclusiva dos portugueses como o seu futuro depende (e muito) da capacidade de afirmação internacional de um país com o potencial económico e geopolítico do Brasil. Por isso mesmo, bom seria que uníssemos esforços (que nos puséssemos de acordo), em vez de cavarmos discrepâncias baseadas em traumas por superar.
Os traumas antibrasileiros são intoleráveis e absurdos, sobretudo quando temos presente o notável exemplo de cooperação de dois eminentes linguistas, um português e um brasileiro, Celso Cunha e Lindley Cintra, que escreveram a modelar  Nova Gramática do Português Contemporâneo. E quem tiver dúvidas acerca da dimensão científica e cultural do Brasil, faça o favor de consultar World Ranking of Universities (em http://www.webometrics.info/); aí verá que a primeira universidade de língua portuguesa é a Universidade de São Paulo, no lugar 114; a segunda é a Universidade de Campinas (Unicamp), no lugar 197; e a primeira universidade portuguesa (a Universidade Técnica de Lisboa), surge num honroso 300.º lugar, um pouco antes da minha alma mater, a Universidade de Coimbra, no 375.º lugar. É preciso dizer mais?
9. Por fim, quinta e última questão, a questão do espanhol e do inglês ou as comparações absurdas.
Ouço dizer: o Inglês  não tem acordo ortográfico e passa muito bem sem ele. Omite-se aqui que as oscilações ortográficas em Inglês (que, aliás, estão dicionarizadas) são muito reduzidas e também que, nele, a relação entre grafia e pronúncia é muito mais convencionada do que em Português; e falta  aprofundar  um pouco a questão, para chegarmos a uma resposta  óbvia: o Inglês não tem acordo ortográfico, porque simplesmente não precisa dele. E não precisa porque o seu esmagador poder linguístico é sobretudo um efeito de outros poderes que arrastam e praticamente impõem aquele poder linguístico: o poder político, o poder económico, o poder tecnológico, o poder cultural, etc. Numa palavra: o poder.
No caso do  Espanhol  importa ir um pouco mais longe e  lembrar que  a emancipação política da América Latina de colonização espanhola conduziu à fragmentação em cerca de uma vintena de países. Isso permitiu a sobrevivência de Espanha como uma espécie de “metrópole” europeia  com um certo ascendente  no plano linguístico; um ascendente que se reforça pelo labor de uma vigorosa política de difusão da língua, com a qual Portugal muito tem a aprender. Nessa política de língua intervém  a Real Academia Española, sendo inequívoco que esta última tem, no universo da Língua Espanhola, um prestígio normativo considerável: tenha-se em vista a capacidade de determinação e também de incorporação lexical que o Diccionario de la Lengua Española  possui, no vasto universo que cobre; uma capacidade de determinação que, evidentemente, vale por um amplo, tácito e respeitado acordo linguístico. Acresce a isto que, nos nossos dias, a Espanha é também uma potência económica, o que ajuda a fazer do Espanhol (e já não apenas naquele vasto espaço post-colonial, note-se) uma espécie de “inglês latino”.
10. Termino. Torna-se absolutamente necessário que a questão do Acordo Ortográfico seja equacionada não apenas de dentro para dentro (como alguns fazem em Portugal), mas sobretudo de dentro para fora. Ou seja: pensando o Português em função de um mundo mais amplo do que o país que lhe deu origem. E sendo assim, que a questão seja vista também como um desígnio colectivo e não reduzida à estreita defesa de interesses particulares ou à expressão de sensibilidades irritadas. O que está em causa é um acordo estratégico, não uma unificação linguística absoluta, do mesmo modo que pensar uma língua sem regulação é convidar à sua rápida fragmentação. Seguramente, não é isso que queremos.

(1) Cf. A Língua como Factor de Unidade, Coimbra,1968, p. 12

(2) Nova Gramática do Português Contemporâneo. 17.ªed., Lisboa: Edições João Sá da Costa: 2002, p. XIV

Texto obtido neste link.

Mais opinião publicada.

A atualização da ortografia em documentos legislativos e o período de transição da adoção do AO

A partir do início de 2012 a Assembleia da República, o Diário da República, a Imprensa Nacional Casa da Moeda e a versão em Português do Jornal Oficial da União Europeia adotam o AO90.

De igual modo, toda as entidades da Administração Direta e Indireta do Estado passam a utilizar obrigatoriamente as normas do AO90.







O uso da ortografia simplificada do Acordo nos documentos legislativos nacionais e europeus e em todos os documentos do Estado vem chamar a atenção para a necessidade de antecipar o termo do período transitório de implementação do AO, que atualmente está previsto para 2015.

Até ao final do período transitório decorrerão ainda três anos em que a ortografia atual e a ortografia antiga poderão conviver. Este facto, mais que qualquer outro, potencia problemas e litígios ortográficos, sobretudo em questões judiciais, notariais, e educacionais.

Vivemos numa época em que o acesso a corretores ortográficos automáticos é generalizado, o que contribui para evidenciar mais ainda a falta de razoabilidade de um período de adaptação à ortografia atual tão largo O período de convivência com a ortografia antiga é claramente excessivo e deve ser revisto no sentido da sua antecipação.

Lindley Cintra: As Origens do Novo Acordo


Esta página transcreve integralmente (e sem autorização) esta outra página do sítio do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Trata-se de um artigo do Prof. Lindley Cintra publicado no Expresso de 1986jun28, enviado para o Ciberdúvidas pela Prof.a Maria Helena Mira Mateus.

Esta página foi colocada no 'em Português Grande' a 2013fev05; a data no Blogger foi modificada por conveniência de arrumação das postagens.



Luís Filipe Lindley Cintra (1925-1991), importante figura da Linguística portuguesa da segunda metade do século passado e coautor da conhecida Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), escreveu o texto que se segue, publicado no semanário Expresso em 28 de junho de 1986, ano de acesa polémica em Portugal à volta de uma proposta de acordo ortográfico então divulgada. Trata-se de um documento relevante para a história da ortografia do português, pois nele Lindley Cintra dá testemunho da sua perspetiva como membro da comissão negociadora da referida proposta, no contexto de um processo que conduziria à formulação do Acordo Ortográfico de 1990.


por Luís F. Lindley Cintra: As origens do novo acordo

Na impossibilidade, no momento presente, de escrever um artigo propriamente dito que responda às mais importantes das intervenções que a recente assinatura do acordo ortográfico luso-brasileiro tem provocado e que vou acompanhando, tanto quanto possível, com a maior atenção, resolvi por agora limitar-me a divulgar e comentar um texto fundamental para uma apreciação justa do texto subscrito no Rio de Janeiro pelos sete países de língua oficial portuguesa e que, segundo me parece, é pouco conhecido e não tem sido citado nas referidas intervenções.

Trata-se do texto de uma moção assinada por alguns dos principais filólogos portugueses e brasileiros da época. Foi apresentada no Primeiro Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, que se reuniu na Universidade de Coimbra de 30 de Abril a 6 de Maio de 1967 e foi aprovado juntamente com algumas outras moções complementares, por todos os participantes presentes. Foi publicado no volume de Actas, editado pela Universidade de Coimbra em 1968, pp. 218-222. Como signatário deste documento conservo-me fiel à justificação que inicia o texto e à maior parte das propostas nele feitas. Como se verá, essas propostas, em quase todos os casos, incidem sobre os pontos de divergência entre as ortografias portuguesa e brasileira que o recente acordo procurou eliminar. E se a proposta 2 e, parcialmente, a proposta 3 não aparecem entre as divergências agora discutidas, é porque, entretanto, em 1971, o Governo brasileiro da altura resolveu aceitar essas propostas e transformá-las em lei, eliminando deste modo algumas das divergências então existentes, num gesto de boa vontade no sentido da, como se vê, já então tão desejada unificação da ortografia luso-brasileira.

A secção de Ciências Filológicas da Academia das Ciências de Lisboa procurou corresponder a este gesto, propondo ao Governo português (que aceitou a sugestão e também a transformou em lei) uma pequena modificação (supressão do acento grave ou circunflexo nas palavras derivadas), enquanto procurava reatar as negociações em vista de um novo acordo. Foi este o ponto de partida dos trabalhos de uma comissão então criada na Academia das Ciências, sob a presidência do prof. Gustavo Cordeiro Ramos e em que participaram o prof. Jacinto de Prado Coelho e eu próprio, tecnicamente apoiados pelo professor do ensino secundário dr. António Ribeiro dos Santos, que se pôs em contacto com a Academia Brasileira de Letras. De aí o período de trabalho sobre este tema que se efectuou entre 1971 e 1975.

Como adiante se verá, as restantes sugestões estão na base das soluções agora finalmente adoptadas. Creio que isto torna particularmente oportuna a sua divulgação.


“Preconceitos e hábitos arreigados”

“Os inconvenientes que resultam da diversidade ortográfica entre o Brasil e Portugal – começava por referir-se na moção aprovada em Coimbra há quase vinte anos – são demasiado evidentes para que seja necessário mencioná-los ou sequer acentuá-los de novo. Pode e, deve pois considerar-se indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adoptar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efectiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.

Em vista disto, resolvem os signatários submeter à apreciação dos colegas as seguintes propostas, que pensam poder servir de base para o trabalho de uma Comissão mista luso-brasileira, que eventualmente venha a ser criada pelas instâncias competentes para resolver o problema em causa”.

(Des)vantagens da “letra muda”

Em seguida enumerava-se o problema das “consoantes mudas”, abolidas no Brasil e parcialmente conservadas em Portugal.

Era – é – o caso, no Brasil de ótimo, otimismo ou [optimismo]; ator, ativo, atuar...; inspetor, reator...; ação, reação, inspeção, acionar...; seleto, seleção, etc.

E em Portugal era – é – o caso de óptimo, optimismo; actor, activo, actuar...; inspector, reactor...; acção, reacção, inspecção, accionar...; selecto, selecção, etc.

“Que se siga a prática brasileira – propunham os signatários do texto-moção de Coimbra – aumentando apenas a lista dos vocábulos cujas consoantes facultativamente se pronunciam' (acrescentando, por ex., facto e fato).

“Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:

“a) – Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. [a tor], [a são].

“b) – Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.

“Quando muito, poderia restabelecer-se a título facultativo o uso do acento grave (òtimismo, àtuar, etc.), sobretudo para os raros casos de homografia (pègada e pegada, prègar e pregar) quando o contexto não seja por si suficiente para evitar o equívoco.”

Sobre o trema e o acento circunflexo

No ponto 2 debruçávamo-nos sobre o uso no Brasil do acento circunflexo na distinção de homógrafos, abolido em Portugal.

“No Brasil: acêrto m./ acerto v.; êle, êles; aquêle, aquêles; êste, êstes; êsse, êsses; fôsse (de ser e ir) fosse (de fossar); tôda, tôdas; sôbre; fôrma; etc., etc.”

“Em Portugal: acerto m. e v.; etc., etc.” E propunha-se: “Que se siga o uso de Portugal, embora deixando a faculdade de usar quer o acento circunflexo (para vogal fechada), quer o agudo (para vogal aberta) em casos em que o contexto não seja suficiente para evitar o equívoco, por exemplo: fôrma – fórma.”

Quanto ao uso no Brasil – não uso em Portugal – do trema sobre o u nas sequências qu, gu antes de e e i para indicar que a letra representa um fonema real: agüentar, agrüição [sic], argüimos, averigüemos, etc., etc.”, propunha-se: “Sendo conveniente, pelo menos em certos casos (livros didácticos, palavras de uso menos frequente, etc.) marcar graficamente esse valor representativo da letra u, deixe-se a faculdade de usar ou não o trema, escrevendo-se pois bilingüismo ou bilinguismo.”

“Nem para um lado nem para outro”

No ponto 4 assinalavam-se as divergências em torno dos “proparoxítonos” (ou falsos proparoxítonos) em que a tónica está seguida de consoante nasal heterossilábica, sendo a vogal fechada no Brasil, e aberta em Portugal”. Por exemplo: Antônio; monômio; homônimo; fenômeno; gênero; lêmure; etc. – utilizados no Brasil – e António, monómio, homónimo, etc., de Portugal. Daí a proposta: “Supressão total dos acentos gráficos nos esdrúxulos, já que a divergência não é meramente gráfica mas fónica. Deste modo se obteria a unidade sem falsear a realidade linguística, nem para um lado nem para o outro.”

Finalmente, no ponto 5, os 14 filólogos portugueses e brasileiros reunidos em Coimbra – Antenor Nascentes, J. Mattoso Câmara, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo, Aryon Dall’Igna Rodrigues, Adriano da Gama Kury, Vitorino Nemésio, Jacinto Prado Coelho, L.F. Lindley Cintra, Maria de Lourdes Belchior, Álvaro J. da Costa Pimpão (que se declarou vencido na questão das “consoantes mudas”), M. de Paiva Boléo, A. da Costa Ramalho e José Herculano de Carvalho – concluíam:

5. “Considerando a necessidade de atenuar, tanto quanto possível, as dificuldades que um sistema ortográfico complexo opõe à alfabetização, recomendar-se finalmente o empreendimento de estudos destinados a promover maior simplificação do sistema ortográfico unificado.”