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agosto 18, 2012

As Falácias Etimológicas de Rui Miguel Ventura Duarte

Em artigo de opinião publicado no Público de ontem, Rui Miguel Ventura Duarte, um opositor ao AO90, defende que a Língua Portuguesa vive bem sem as consoantes mudas etimológicas eliminadas unilateralmente em Portugal através da Reforma Ortográfica de 1911 (RO1911); em contrapartida, ele tem a certeza que os resquícios etimológicos mudos remanescentes da RO1911 (e que são eliminados pelo AO90), esses são imprescindíveis à inteligibilidade da Língua Portuguesa.

Esta posição é verdadeiramente insustentável atendendo às incongruências e inconsistências - ao mesmo tempo linguísticas e lógicas – que encerra.

A este respeito, é bom recordar que a RO1911 eliminou da ortografia portuguesa a grande maioria das consoantes mudas etimológicas, escapando apenas aquelas que, supostamente, tinham valor fonético. Exemplificando, o 'c’ mudo etimológico nas palavras 'construCção' ou 'oCculto' foi eliminado porque não era pronunciado, mas o 'c' mudo etimológico nas palavras 'redaCção' ou 'aCtuar' foi mantido porque se pretendeu que influenciava a pronúncia da vogal átona anterior.

Nesta circunstância, como é possível Rui Duarte considerar que as consoantes mudas que sobraram da razia simplificadora de 1911 são componentes imprescindíveis ao bom entendimento da Língua e, simultaneamente, considerar que  o grosso das consoantes mudas abandonadas e esquecidas desde há cem anos não fazem falta à mesmíssima inteligibilidade?

Exemplificando, se Rui Duarte acha que os portugueses agora não sabem o que é uma “atriz” porque deixaram de escrever “aCtriz”, como é possível ele achar que os portugueses entendem corretamente o que são "contratos", ou "aflições" ou "conjunturas", ou "ocasiões" uma vez que não escrevem "contraCtos", "afliCções", "conjunCturas" e "oCcasiões", como se fazia há cem anos?


A partir daqui é quase impossível continuar a abordar o artigo de opinião de Duarte sem lhe expor o ridículo, sem o reduzir ao absurdo.


É que Rui Duarte também está seguro que os portugueses deixarão de perceber qual o país de origem dos egipcios agora que Egito se escreve sem 'p' mudo. E tem boas razões para estar preocupado. Afinal, e pelas mesmas razões, quem sabe de onde são naturais os cipriotas ou os monegascos? (saber mais)

Mas, e ao contrário do que Rui Duarte imagina, os problemas com a simplificação ortográfica não afetam apenas os portugueses.
Os ingleses têm imensa dificuldade em perceber o verdadeiro significado da palavra 'fantastic' uma vez que a escrevem sem a transliteração tradicional da letra 'phi' do étimo grego.
De igual modo, os franceses têm dificuldade em perceber o que significam as palavras 'projet' e ‘exagerer’ porque lhes faltam, respetivamente, o 'c' e o 'g' (que seriam mudos se fossem grafados) de étimo latino.
Há ainda que considerar os problemas que alemães têm para perceber plenamente o significado da palavra ‘direktor', assim com o 'k' no lugar do 'c' etimológico porque aquele 'k' é fonético, não é etimológico, ao contrário do que alguns julgam saber.

Acontece que estes são os mais felizardos. Porque pior estão os nórdicos (finlandeses, suecos, noruegueses, dinamarqueses), e os eslavos (checos, polacos, eslovenos) e outros latinos (como os espanhóis e os romenos), todos com uma ortografia terrivelmente simplificada, ainda que um pouco menos que os italianos.

Por falar em italianos, imagine-se a projeção internacional que Verdi poderia ter atingido se tivesse escrito as suas óperas numa língua mais respeitadora da etimologia, como o francês ou inglês. E Leonardo da Vinci, esse renancentista quase desconhecido; hoje seria considerado a mais brilhante mente da humanidade não tivesse ele tido o infortúnio de ter escrito às avessas e, o que é pior, de o ter feito numa ortografia quase fonética.


Portanto, talvez Rui Duarte deva seguir o bom conselho de António Emiliano, o mais lúcido dos opositores ao AO90, que acha que o argumento etimológico contra o AO não vale um caracol, e que quem o usa se põe a jeito para ser ridicularizado ao referir a importância do pechisbeque etimológico em ortografias etimológicas simplificadas, como a portuguesa.


Nota: Este post é uma adaptação e ampliação de comentário do autor publicado no Delito de Opinião. O autor agradece a oportunidade de publicação no 'em Português Grande'.

3 comentários:

  1. Gralha: «os problemas com a simplificação ortografica não afetam»; deveria ser «os problemas com a simplificação ortográfica não afetam».

    De resto, muito bom. Obrigado!

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  2. Sou redator e defensor do português ao abrigo do AO90, não tanto pelas questões etimológicas ou fonéticas, mas mais pela sincronização com o resto do mundo lusófono. Mas deixo a pergunta legítima: até onde podem ir as alterações no sentido de tornar a língua cada vez mais fonética? Presumo que haja um limite. Porque não escrevemos "hoje" como "ôje"? A preservação etimológica dá espaço a interpretações fonéticas mais variadas, o que é positivo em línguas geograficamente dispersas com muitos sotaques diferentes. A ortografia do Português não pode ser moldada com a fonética oralmente expressa em Lisboa!
    Cumprimentos

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